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A satisfação de mulheres trans trabalhadoras do sexo com a qualidade do suporte social prestado pelos serviços sociais

Nélson Ramalho
Universidade Lusófona, Portugal

A satisfação de mulheres trans trabalhadoras do sexo com a qualidade do suporte social prestado pelos serviços sociais

Ehquidad: La Revista Internacional de Políticas de Bienestar y Trabajo Social, núm. 20, pp. 111-138, 2023

Asociación Internacional de Ciencias Sociales y Trabajo Social

Recepción: 30 Enero 2023

Revisado: 23 Mayo 2023

Aprobación: 25 Mayo 2023

Publicación: 17 Julio 2023

Resumo: O artigo procurou analisar a satisfação de mulheres trans trabalhadoras do sexo com a qualidade do suporte social prestado pelos serviços sociais. Através do desenvolvimento de uma pesquisa de natureza qualitativa, na qual foram realizadas oito entrevistas semiestruturadas a mulheres trans que realizavam trabalho sexual em contexto de rua, em Lisboa (Portugal), foi possível identificar que estas se confrontavam frequentemente com barreiras e limitações no acesso aos serviços sociais, bem como com a falta de apoio material e emocional ou a concessão de recursos inadequados ou em tempo não útil por parte destes. O “suporte social problemático” atribuído comprometeu fortemente a disposição das entrevistadas para recorrerem novamente aos serviços sociais. Considera-se, deste modo, que os serviços sociais deverão desenvolver esforços para eliminar todas as barreiras que afastam as pessoas trans, de género diverso e não binário do suporte social, devendo evitar práticas e comportamentos opressivos que favoreçam processos de vitimação secundária, com vista a se transformarem em espaços verdadeiramente seguros e inclusivos.

Palavras-chave: Satisfação, Suporte social, Mulheres trans, Trabalhadoras do sexo, Serviços sociais.

Abstract: The article sought to analyze trans women sex workers satisfaction with the quality of social support provided by social services. Through the development of a qualitative research, in which eight semi-structured interviews were carried out with trans women street sex workers, in Lisbon (Portugal), it was possible to identify that they often faced institutional barriers and limitations in accessing social services, as well as with lack of material and emotional support, or with inappropriate or timely allocation of resources by them. The “problematic social support” attributed strongly compromised their willingness of the interviewees to resort to social services again. In this way, it is considered that social services should make efforts to eliminate all barriers that separate transgender, gender diverse and non-binary people from social support, and should avoid oppressive practices and and behaviors that favor secondary victimization processes, with the aim of becoming truly safe and inclusive spaces.

Keywords: Satisfaction, Social support, Trans women, Sex workers, Social services.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo procura analisar as perceções de mulheres trans trabalhadoras do sexo sobre a natureza e a qualidade do suporte social prestado pelos serviços sociais. Há um corpo crescente de literatura que documenta que as pessoas trans, de género diverso e não binárias são expostas a elevados níveis de estigmatização, marginalização e vitimação devido à sua expressão e/ou identidade de género (Lozano-Verduzco & Melendez, 2021; Wirtz, 2020). Esta situação, promotora de stress e alienação das estruturas sociais, afeta negativamente a sua saúde física e mental (Aristegui et al., 2021; Scandurra, 2017; White Hughto, 2015), favorecendo a depressão, a ansiedade, a baixa-autoestima e o isolamento social. Com efeito, uma frágil saúde mental tem efeitos no aumento da probabilidade de ideação e tentativas de suicídio (Adams et al., 2017; Marquez-Velarde et al., 2023), no uso indevido de substâncias (De Pedro & Gorse, 2023; Klein & Golup, 2016) e no desenvolvimento de comportamentos sexuais de alto risco, como o sexo desprotegido, aumentando a exposição à infeção por VIH/Sida (Morel et al., 2023; Parsons, 2018), dada a sua alta prevalência no trabalho sexual (Nuttbrock, 2018).

O suporte social concedido pelas redes sociais pessoais – definidas por Sluzki (1997) como o conjunto de “todas as relações que um indivíduo percebe como significativas” (podendo estas compreender as interações com familiares, amigos, colegas, vizinhos, técnicos; membros de organizações sociais, religiosas, recreativas, políticas; redes sociais virtuais e todos os que estão à volta e que se diferenciam da restante “massa anónima da sociedade” (p. 41) independentemente da distância geográfica em que elas ocorrem) pode revelar-se um importante fator de proteção e resiliência perante os efeitos adversos da transfobia e da discriminação. Segundo Sluzki (1997, 2010), esse suporte social pode ser concedido na forma de: (.) companhia, isto é, na realização de atividades conjuntas que proporcionam prazer e bem-estar (ir ao cinema, ir às compras, dançar, jantar) ou simplesmente o «estar juntos» em situações vitais (doença, morte de alguém); (ii. apoio emocional, ou seja, o «estar lá» quando necessário, manifestando interesse, compreensão, empatia, estímulo, aceitação e apoio por via de gestos de amor, afeto e confiança (como escutar, conceder um abraço, compartilhar preocupações, sentimentos ou questões íntimas); (iii. orientação cognitiva e aconselhamento, ou seja, nas interações que fornecem conselhos e informações práticas, ajudam a tomar decisões e a atingir um determinado objetivo; (iv. regulação social, isto é, nas interações que lembram e reafirmam responsabilidades, obrigações e papéis a assumir, a fim de se neutralizar desvios de comportamento e resolver conflitos; (.) ajuda material ou de serviços, que é respeitante à provisão de bens, dinheiro, conhecimentos e/ou serviços especializados (nos quais se incluem o apoio técnico ou profissional) que ajudam a reduzir a sobrecarga de dificuldades; e (vi. acesso a novos contactos, ou seja, a interações que potenciam a criação de novas relações.

A importância do suporte social tem sido bem documentada entre homens e mulheres cisgénero, isto é, sujeitos cuja identidade ou expressão de género corresponde ao sexo atribuído no nascimento. Evidências de diferentes áreas do conhecimento têm demonstrado que o suporte social é não só um “amortecedor” dos impactos negativos dos fatores de stress (Cohen & Wills, 1985; Sluzki, 1997, 2010), incrementando a capacidade dos indivíduos para os enfrentarem, como está positivamente relacionado com a promoção da saúde, da qualidade de vida e do bem-estar individual (Andrade & Vaitsman, 2002; Sluzki, 1997, 2010).

Além de evitar o isolamento social (Andrade & Vaitsman, 2002), o suporte social desempenha um importante papel na recuperação e tratamento de comportamentos aditivos (Tracy & Johnson, 2007), de sintomatologias ansiogénicas e depressivas (Brugha et al., 1990) e outras perturbações mentais (Perry & Pescosolido, 2015). Uma forte, ativa e eficiente rede social tem um “efeito salutogénico” (Sluzki, 2010, p. 6). Tal significa que quem conta com uma “boa” rede de suporte social tende a ficar menos doente, a recuperar mais facilmente de doenças, cirurgias ou acidentes e a apresentar uma maior resiliência emocional. Isto acontece porque a estabilidade, a segurança e a proteção proporcionada pela rede social atenua o mal-estar psicológico, aumenta a motivação para cuidar de si mesmo, e favorece o desenvolvimento de comportamentos de monitorização da saúde (Cohen & Wills, 1985; Sluzki, 2010).

A rede social contribui para dar “sentido à vida” porque a ajuda e a esperança fornecida, aumenta a confiança, a autoestima, a vontade de viver e de enfrentar as adversidades do dia-a-dia (Andrade & Vaitsman, 2002). Inversamente, uma insuficiente ou ineficiente rede social constitui-se um fator de risco psicossocial para a saúde física e mental (Shankar et al., 2011; Sluzki, 2010), contribuindo negativamente para uma reduzida e deficitária qualidade de vida dos sujeitos.

Diferentes estudos têm relatado consistentemente que as pessoas trans, de género diverso e não binárias se confrontam com ruturas e cortes comunicacionais severos com as suas redes sociais informais (Klein & Golup, 2016; Grant et al., 2011), ou seja, as redes relacionais baseadas em afinidades pessoais de natureza afetiva (como a família, os amigos, os vizinhos ou os colegas de escola ou trabalho), sendo geralmente as mulheres trans – e sobretudo as que pertencem a minorias étnico-raciais (Graham et al., 2014) – que apresentam maiores níveis de rejeição social quando comparadas com homens trans (Scandura et al., 2017).

Muitas pessoas trans, de género diverso e não binárias acabam, assim, por se refugiar e constituir redes de suporte social “alternativas”, fora dos modelos cisnormativos, inserindo-se em comunidades de pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgénero e Intersexuais (LGBTI+) (Pinto et al., 2008) com quem interagem de forma presencial ou virtual (Dowers et al., 2020) e estabelecem laços de solidariedade. A segurança, o acesso a informações e recursos, assim como o apoio emocional, afetivo e material que recebem dessas comunidades, facilita o reconhecimento da sua identidade (Pinto et al., 2008; Pflum et al., 2015) e incrementa o seu bem-estar psicológico.

As redes sociais formais – entendidas como o conjunto dos relacionamentos estabelecidos dentro de um quadro organizacional, composto por uma diversidade de instituições públicas e privadas e de profissionais que se encontram estruturados com o objetivo de fornecer serviços a quem deles necessita (Guadalupe, 2003) – podem também contribuir fortemente para a resolução de problemas, a satisfação de necessidades e a proteção de quem se encontra em situação de vulnerabilidade social. Alguns estudos têm analisado as interações das pessoas trans, de género diverso e não binárias com as redes sociais formais, em especial os serviços de saúde (Abreu et al., 2019; De Santis et al., 2020; Kcomt, 2019; Moleiro & Pinto, 2012) e os serviços sociais (Kia, MacKinnon & Göncü, 2023; Namaste, 2000; Pinto et al., 2008; Salisbury e Dentato, 2016; Stotzer et al., 2013), e identificado que estas se confrontam frequentemente com barreiras no seu acesso, insegurança, incompreensão, desqualificação profissional e negação do suporte social baseada na sua expressão e/ou identidade de género, o que tende a comprometer a probabilidade de recorrerem novamente a esses serviços.

Desconhecendo-se, em Portugal, a existência de estudos focados na análise particular da interação das pessoas trans, de género diverso e não binárias com os serviços sociais, procurou-se analisar a satisfação com a natureza e qualidade do suporte social prestado pelos serviços sociais a mulheres trans trabalhadoras do sexo de forma a se conhecer o modo como estes se constituem fatores de proteção ou de risco psicossocial junto desta população.

2. METODOLOGIA

Para se atingir os objetivos propostos, foi desenvolvido um estudo qualitativo, de natureza exploratória-descritivaporque, segundo Duhamel e Fortin (1996, p. 161), além deste tipo de estudos procurar explorar e compreender fenómenos específicos cujo conhecimento sobre eles é limitado, permitem descrever e documentar as suas características e contextos. Para tal, utilizou-se a entrevista semiestruturada (Flick, 2005) como técnica de pesquisa principal por possibilitar a incorporação de uma série de perguntas-guia, mais ou menos abertas, para poderem ser respondidas, tanto quanto possível, de maneira flexível. O que se pretendia era, pois, facilitar a expressão das narrativas e aceder a um grau máximo de autenticidade e de profundidade.

Partindo das relações de proximidade estabelecidas com diferentes pessoas trans trabalhadoras do sexo decorrentes do trabalho etnográfico levado a cabo para a prossecução da investigação doutoral sobre a realidade da prostituição trans em Portugal (Ramalho, 2019), a amostra foi constituída de forma intencional (Patton, 2022), composta por oito mulheres trans trabalhadoras do sexo em contexto de rua, em Lisboa. A forma de amostragem foi a de variação máxima (Patton, 2002) para ser captada a máxima heterogeneidade das participantes e enriquecer os dados em análise, pelo que foram selecionadas em função da sua idade, escolaridade, anos de prática de prostituição e nacionalidade.

Neste sentido, fizeram parte do estudo mulheres trans trabalhadoras do sexo com idades compreendidas entre os 23 e os 56 anos (.=34,75; DP=9,5), com escolaridade variável entre o 4º e o 12º ano, e de nacionalidade portuguesa (7) e Cabo-verdiana (1)[embora existissem trabalhadoras do sexo de outras nacionalidades (nomeadamente, brasileira), não foi possível recrutá-las para a amostra quer por inexistência de experiências de interação prévia com os serviços sociais portugueses, quer por recusa na colaboração do estudo quando existentes]. Em termos de anos de prática de prostituição, a amostra oscilava entre quem se prostituía há 2 e 35 anos (.=12,6; DP=9,6) (Tabela 1).

Tabla 1.
Caracterização da amostra
NomeIdadeEscolaridadeAnos de prática de prostituiçãoNacionalidade
Dalila32 anos10º ano8 anosPortuguesa
Fabiana25 anos11º ano6 anosPortuguesa
Liliana23 anos12º ano2 anosPortuguesa
Marlene32 anos12º ano15 anosCabo-verdiana
Nádia40 anos4º ano8 anosPortuguesa
Rebeca34 anos9º ano10 anosPortuguesa
Sabrina36 anos5º ano17 anosPortuguesa
Zara56 anos6º ano35 anosPortuguesa
Fonte: Elaboração própria.

Nota: Os nomes são fictícios por forma a assegurar o anonimato das participantes e impossibilitar a sua identificação.

As participantes foram contactadas e convidadas a relatar as suas experiências com os serviços sociais, avaliando a satisfação com a natureza, o padrão de funcionamento e a qualidade do apoio prestado por estes. Foram esclarecidas detalhadamente sobre os objetivos do estudo, o direito à confidencialidade e ao anonimato no tratamento e divulgação de informação, o direito à recusa em responder às perguntas dirigidas, assim como o direito à desistência em qualquer fase da pesquisa. Todas elas deram o consentimento informado na forma verbal antes do início da gravação de áudio, concordado com esta e a utilização dos dados para fins de investigação.

Os locais de realização das entrevistas foram livremente escolhidos pelas trabalhadoras do sexo de acordo com as suas preferências, tendo estas ocorrido nos seus espaços domésticos. O tempo de duração das entrevistas foi variável, tendo a duração mínima sido de, aproximadamente, uma hora e a máxima de mais de três horas, representando uma média de uma hora e 44 minutos por cada entrevista. O investigador que conduziu a entrevista orientou-se pelo Código Deontológico dos Assistentes Sociais em Portugal, publicado em 2018 pela Associação dos Profissionais de Serviço Social.

As entrevistas foram primeiramente transcritas, permitindo constituir um corpus de dados que, posteriormente, foi sujeito a uma leitura exaustiva, conforme proposto por Maxwell (2005), de forma a permitir uma familiarização com as principais ideias das participantes. A partir desta análise “horizontal”, os dados foram submetidos a técnicas de análise de conteúdo categorial (Bardin, 2013), após um processo de codificação e categorização. Estando o estudo suportado numa abordagem indutiva, esta análise foi materializada através de uma operação de desmembramento do corpus constituinte em pequenas unidades de registo (Vala, 2014, p. 114) que, em seguida, foram agrupados em categorias emergidas a partir dos dados, relacionadas com a “linguagem, tratamento e (in)adequação dos serviços sociais”, o “suporte social atribuído” e os “obstáculos na aquisição dos apoios sociais”, cujos resultados serão apresentados no tópico seguinte.

3. RESULTADOS

3.1. Linguagem, Tratamento e (In)adequação dos Serviços Sociais

As entrevistadas avaliaram negativamente a experiência de interação com os serviços sociais dado se terem confrontado com um conjunto de barreiras no acesso ao suporte social. O modo como estes se encontravam estruturados, assim como a linguagem e o tratamento utilizado pelos seus profissionais eram, desde logo, indicadores que lhes permitiam perceber que os serviços sociais não se encontravam particularmente sensíveis às questões de identidade de género e/ou orientação sexual.

Em termos estruturais, estes estavam organizados para atender, predominantemente, públicos heterossexuais e cisgénero, situação que era observável em instalações segregadas por género (casas de banho, alojamentos…), em formulários de admissão e/ou de abertura de processos sociais que não contemplavam a identidade de género e/ou orientação sexual dos utentes, ou na inexistência de representatividade de pessoas LGBTI+ nos materiais informativos (brochuras, panfletos, cartazes e pósteres) espalhados nas salas de espera e de atendimento social. Vários autores (Bergh e Crisp, 2004; Messinger, 2006; Stotzer et al., 2013) têm referido que a presença de materiais desta natureza podem ajudar a indicar aos utentes LGBTI+ que são bem-vindos aos serviços e que os profissionais estão recetivos para os atender, incentivando ao diálogo. Porém, segundo as entrevistadas, a sua não existência fez com que o “clima” comunicacional (Stotzer et al., 2013, p. 69) fosse percebido como inseguro, levando a que algumas não se sentissem confortáveis para falar aberta e tranquilamente sobre os seus problemas ou a sua identidade. Estas singularidades, relacionadas com a organização interna, não são menos prejudiciais do que situações de discriminação explícita na medida em que a violência (inclusive, a institucional) pode ocorrer a partir das primeiras interações estabelecidas.

Proceder a um tratamento adequado e respeitoso das pessoas trans, de género diverso e não binárias poderá, entre outros aspetos, ajudar os serviços sociais a se tornarem verdadeiramente seguros. Contudo, algumas entrevistadas relataram que, embora o trato no feminino fosse muito importante, tinham sido incorretamente nomeadas no masculino não só por quem realizou o atendimento de triagem, como também pelos elementos da equipa técnica (prática “não-profissional” também identificada nos serviços sociais por Salisbury e Dentato, 2016, p. 126). Fabiana relatou que, na sequência do despejo por falta de pagamento do quarto onde residia, dirigiu-se a uma instituição de apoio social – uma das mais importantes da cidade de Lisboa – para ser atendida por uma equipa pertencente a uma unidade que se definia como “intervenção de proximidade”. Dirigiu-se à receção a fim de solicitar gentilmente que fosse chamada pelo nome com o qual se identificava e não pelo nome que constava no cartão de cidadão. Pese embora a sua insistência, a pessoa que a atendeu recusou-se a fazê-lo, argumentando «não ser possível» porque o «computador não permitia registar dois nomes ao mesmo tempo» e, como tal, teria de chamá-la pelo nome “oficial”. Fabiana foi, contra sua vontade, chamada em voz alta pelo nome masculino diante de todas as pessoas que se encontravam presentes na sala de espera. A revelação pública do seu sexo biológico deixou-a bastante embaraçada, gerando sentimentos de raiva e angústia. Atitudes semelhantes foram, também, relatadas por outras mulheres trans, razão pela qual alegaram que a perceção da qualidade dos serviços sociais foi, nesse momento, comprometida. Na perspetiva das entrevistadas, os serviços sociais não se encontravam preparados para atender competentemente pessoas trans, de género diverso e não binárias, desumanizando-as ao se referiam a elas pelo nome atribuído à nascença.

A situação acima descrita tornou-se incómoda não só para Fabiana, como para a própria assistente social que aguardava por «Ricardo» no gabinete de atendimento. Ao vê-la, ordenou-lhe que respeitasse a ordem de chamada, dado acreditar tratar-se de outra pessoa. «Doutora, sou eu, o Ricardo», retorquiu-lhe Fabiana. Depois de entrar, boa parte do atendimento acabou por se centrar na problemática da identidade de género e não no pedido de ajuda que a conduziu ao local, tendo a «doutora» realizado inúmeros questionamentos para tentar compreender “um pouco melhor a situação”. A natureza de algumas das suas preocupações – realizadas, por vezes, com uso de pronomes pessoais masculinos, que em nada ajudavam a validar a experiência da Fabiana – chegaram a ser bastante intrusivas, focadas extensivamente no processo de construção da feminilidade, na aparência física e na tentativa de descodificar a sua atual genitália. Atitudes destas revelam falta de sensibilidade para lidar com as questões da identidade de género, o que, aliado a uma curiosidade mórbida, prejudicou a capacidade de Fabiana de construir um relacionamento estável e profícuo, de confiança, com os serviços sociais.

Vários autores (Burdge, 2007; Erich et al., 2007; Mallon, 1999; Ramalho, 2021) têm defendido a necessidade dos/as assistentes sociais se munirem de conhecimentos adequados sobre as necessidades das pessoas trans, de género diverso e não binárias de modo a não reproduzirem práticas opressivas na sua atividade profissional.

A falta de sensibilidade e “competências culturais” (Berg e Crisp, 2004; Raj, 2002) têm impactos diretos na prestação profissional, cujas condutas poderão revelar-se displicentes e inadequadas, promovendo o afastamento dos serviços sociais de quem, justamente, necessita deles. Segundo as mulheres trans entrevistadas, a procura posterior de suporte social foi, muitas vezes, adiada por receio de virem a ser novamente discriminadas, julgadas e tratadas de maneira desrespeitosa, com base nas más experiências vividas e/ou relatadas por outras amigas.

3.2. Desajustamento do Suporte Social Atribuído

A pouca, ou nenhuma, formação teórica sobre as questões da identidade de género e/ou orientação sexual concedida nos currículos escolares dos/as assistentes sociais (Bergh e Crisp, 2004; Erich et al., 2007; McPhail, 2008; Ramalho, 2021), impossibilita que estes/as profissionais desenvolvam competências para implementar “práticas afirmativas” (Hunter e Hickerson, 2003; Messinger, 2006) junto de pessoas trans, de género diverso e não binárias. Com efeito, não é de surpreender que o suporte concedido possa, por vezes, ser desajustado às necessidades destas. Sabrina relatou que, durante alguns meses, esteve na condição de sem-abrigo, tendo solicitado ajuda aos serviços sociais para resolver o seu problema de falta de habitação. A resposta obtida foi a integração num albergue masculino de alojamento temporário, na qual a sua identidade de género não foi tida em conta.

Em Portugal, a maioria dos albergues ou centros de alojamento temporário segrega o sexo/género. Inclusive, os albergues «mistos» apresentam instalações (quartos e balneários) dirigidas a homens e a mulheres separadamente. Tal como Sabrina, as pessoas que expressam ou se identificam com um género diferente do sexo atribuído à nascença experimentam dificuldades de integração neste tipo de respostas sociais, por serem «forçadas» a viver em espaços que não são sensíveis ou minimamente preparados para atender às suas necessidades.

Em particular, os códigos de vestuário relacionados com o género, o acesso às casas de banho e chuveiros, a incompreensão de funcionários, interventores sociais ou outros residentes (manifestada em atitudes e comportamentos desinformados, desrespeitosos e preconceituosos) podem ser barreiras problemáticas para uma adequada e segura integração. Por isso, as políticas de funcionamento nestes dispositivos de resposta social evidenciam uma clara incapacidade para garantir segurança e proteção às pessoas trans, de género diverso e não binárias, deixando-as vulneráveis a diferentes tipos de perigo, violência e hostilização (HCH Clinicians’ Network; 2002; Mottet e Ohle, 2003; Namaste, 2000; Yu, 2010). No caso da Sabrina, a vitimação secundária perpetrada pelos sistemas de ação social foi, pois, um fator determinante para sustentar o desejo de regressar aos contextos de rua:

[…] ainda recorri na altura àquela coisa da Praça da Alegria que tinha uma… Santa Casa, em que me mandaram para um sítio, um albergue que eu dormi lá a primeira noite, mas não dormi mais nenhuma lá. Eu disse mesmo a eles «prefiro dormir na rua», porque sentia-me mais segura na rua que dentro do albergue. Porque, é assim, não me identificava com aquelas pessoas lá dentro. Eu sabia que estava a necessitar, mas não me identificava com ninguém que estivesse lá dentro. Para já aquilo estava cheio de pulgas, logo para começar. Depois, o barulho era constante […] eu via coisas lá dentro que nem ao diabo se lembrava. Tinha 19 anos, tinha vindo de uma zona completamente diferente, né, e comecei a levar com aquela situação. Ao ponto que eu fui e disse a elas [assistentes sociais]: […] «só lhes peço uma coisa: guardem-me as minhas coisas aqui. Eu posso cá vir tomar banho, mas é assim, aqui dormir eu não vou dormir». Disse mesmo a elas «sinto-me mais segura dormir na rua, num banco de uma praça, que dormir aqui dentro». [Sabrina]

Mesmo estando imersa em perigos, a rua foi sentida por Sabrina como mais segura do que o próprio albergue. Ainda que este providenciasse abrigo, não lhe garantia segurança e proteção, deixando-a vulnerável à ridicularização, ao assédio, ao abuso e à violência por parte dos restantes residentes.

Situações de encaminhamentos para respostas sociais com horários de funcionamento incompatíveis com a dinâmica de vida das mulheres trans trabalhadoras do sexual foram, também, relatados. Para que Fabiana pudesse beneficiar de apoio alimentar, tinha de se apresentar na instituição, todos os dias, às 11 horas da manhã, horário em que eram distribuídas, em cuvetes de plástico, as refeições do almoço e, simultaneamente, do jantar: «Como posso estar lá a essa hora, se me prostituo de noite?». Os apoios sociais eram escassos e os que existiam impunham horários que dificultavam a sua obtenção. Se Fabiana fosse buscar as refeições, na noite anterior não poderia prostituir-se até tarde porque, na manhã seguinte, teria de se levantar cedo. Como precisava do dinheiro obtido com o trabalho sexual para pagar a diária da pensão, viu-se forçada a declinar o apoio alimentar, mesmo precisando dele.

Na prática, os sistemas de apoio social não respondiam às necessidades específicas de muitas entrevistadas, porque não tinham em conta o seu quotidiano noturno, nem procuravam ser compatíveis com ele. A insensibilidade destes para com a realidade social das mulheres trans afetava profundamente o grau de aceitação das respostas oferecidas, a adesão a tratamentos ou a permanência em determinadas estruturas residenciais.

Foram também relatadas situações de recusa de pedidos de apoio social com base em juízos de valor relacionados com os processos de transformação corporal e/ou o trabalho sexual exercido por algumas mulheres trans. Rebeca, por exemplo, descreveu que a assistente social levantou dúvidas especulativas sobre a real gravidade da sua situação de pobreza, negando-lhe a atribuição de apoio alimentar, por ter constatado que tinha procedido recentemente à colocação de próteses mamárias. «Fui pedir ajuda e o que me disseram foi, ‘se tiveste dinheiro para pôr um par de mamas também tens dinheiro para comer’», explicou-se. «Isso é uma resposta que uma assistente social tem de dar?», acrescentou, indignada. Interações destas estavam, pois, alicerçadas no total desconhecimento sobre a necessidade que muitas pessoas trans têm de adequar o corpo à identidade, e o esforço hercúleo exigido para o conseguirem. Nádia, por sua vez, referiu ter boa relação com a técnica que a acompanhava na medida de Rendimento Social de Inserção. «É boa doutora. É. Eu não tenho que dizer», exprimiu ela. A mesma tinha conhecimento que se prostituía, (a maior parte dos/as técnicos/as desconhecia a atividade ligada ao trabalho sexual das utentes, na medida em que elas tendiam a esconder essa informação para evitarem juízos de valor e tratamento discriminatório), e sabia que a sua transformação corporal fora conseguida com os rendimentos dessa atividade.

Todavia, Nádia tinha medo de pedir outro tipo de apoios, ainda que deles precisasse, pois sabia que a técnica se recusaria a atribuí-los por considerar que ela ganhava uma «fortuna» com a prostituição. «Você já está aqui há meia hora, viu-me a fazer algum cliente? Nada… não fiz nada. Nem ontem, nem hoje, nada», disse, a fim de indicar que se encontrava há meses a passar por um período de grave carência económica, mas que tinha vergonha de rogar por nova ajuda. Esta situação induzia-lhe certa angústia, pois não sabia o que fazer e a quem recorrer.

A falta de conhecimento sobre os contextos reais de vida e identitário das pessoas trans, de género diverso e não binárias por parte de profissionais é, pois, uma barreira que as impede de receberem os “melhores serviços possíveis” (Stotzer et al., 2013, p. 69), ou seja, serviços adequados e de qualidade.

Algumas entrevistadas sentiam necessidade de despender parte do seu tempo informando e educando os/as próprios/as profissionais (Namaste, 2000) sobre as suas necessidades com os processos de transição, o trabalho sexual, o estigma, a violência, o VIH/Sida, a dificuldade de acesso à saúde, ao emprego e à habitação, a fim de poderem receber cuidados e intervenções competentes. Saber que os/as profissionais/as não tinham conhecimentos e/ou sensibilidade para com estas suas preocupações fazia com que não se sentissem minimamente protegidas por eles/as, o que as desencorajava de voltarem a recorrer aos serviços sociais.

3.3. Obstáculos na Aquisição dos Apoios Sociais

As entrevistadas referiram, também, à semelhança do que foi identificado por Pinto et al. (2008, p. 214), haver dificuldades excessivas na obtenção dos apoios sociais. Essas dificuldades revelaram-se, desde logo, na avaliação diagnóstica realizada pelos/as assistentes sociais, caracterizada por uma fase prévia de inquérito e, posteriormente, uma fase de “prova” da condição de recursos. A primeira fase era descrita como sendo bastante exigente, na medida em que era realizada uma espécie de «interrogatório» exaustivo sobre inúmeros aspetos da sua vida privada, mesmo que alguns não lhes parecessem relevantes para a atribuição dos apoios solicitados.

Muitas das questões eram-lhes dirigidas sem que tivesse havido tempo para se construir uma relação de confiança mútua, o que as impedia de serem totalmente honestas, dado recearem que não lhes fossem atribuídas as ajudas. Além disso, a posição social humilde de algumas mulheres trans contribuía para fortalecer este seu fechamento — diante da linguagem diferenciada das «doutoras» (Nádia) e da disparidade cultural entre elas, sentiam-se constrangidas em expor certos assuntos que consideravam delicados.

Ainda que as entrevistadas procurassem os serviços sociais fundamentalmente para obter algum tipo de apoio material, elas esperavam que, no decorrer dessa relação de ajuda, também lhes fosse concedido apoio emocional, sem que o solicitassem: que as aconselhassem, as compreendessem, as confortassem e lhes dessem «um amparo», como mencionou Marlene. Liliana gabava-se de ter uma técnica atenciosa com quem frequentemente «desabafava». «Mas não é uma conversa de assistente social», garantiu ela. «É uma conversa de amigos», acrescentou, para indicar a cumplicidade que mantinha com ela. Situações destas eram, no entanto, escassas. As assistentes sociais não mostravam muita disponibilidade para lhes providenciar este tipo de suporte, apesar de ele promover o bem-estar psicológico, diminuir o isolamento e a solidão. Segundo as entrevistadas, elas estavam focadas primordialmente na averiguação e fiscalização de documentos, isto porque a segunda fase da avaliação diagnóstica se centrava, precisamente, na prova da condição de recursos, na qual era exigido o preenchimento de requerimentos e a entrega de documentos, alguns dos quais com custos associados. Fabiana ficou incrédula ao saber que para beneficiar do apoio económico da medida do Rendimento Social de Inserção tinha de gastar dinheiro que na altura não possuía, por se encontrar em situação de grave carência económica:

Pedem muita coisa. Tenho que ir à ‘Loja do Cidadão’ mudar a morada do meu cartão de cidadão, tem que se pagar três euros ou o que é. [...] Tenho de ir às finanças pedir uma declaração em como não estou a descontar em lado nenhum, que são sete euros. É pouco, mas [...] para mim já é um valor significativo. [...] estou a pedir ajuda e tenho que pagar para ser ajudada?! [...] Eu mal tenho para comer... [Fabiana]

O acesso ao direito estava condicionado pela sujeição das mulheres trans às avaliações institucionais tecnicistas e burocráticas, pelo que, como refere Amaro (2012, p. 260), a sua “universalidade” acaba por se transformar numa “parcialização do acesso” e do tipo de apoio concedido. Perante práticas que reduzem a intervenção social ao formalismo da verificação de preenchimento de requisitos, reguladores do processo de cidadania, muitas trabalhadoras do sexo acabavam por desistir do seu pedido de ajuda.

A complexidade dos procedimentos (alguns ininteligíveis) e os excessivos protocolos de intervenção que tinham de cumprir para aceder aos benefícios sociais eram extremamente exigentes em termos de tempo e dinheiro, para não mencionar que, em termos emocionais, eram muito desgastantes. A cada instituição a que se deslocavam para tratar ou recolher a documentação exigida confrontavam-se com comportamentos hostis, intolerância, ausência de cooperação, juízos de valor com base na aparência física, negação da identidade, tratamento desrespeitoso e, até, insultos verbais por parte de alguns funcionários. Reconhecendo as dificuldades com que se deparavam para obter os apoios sociais, as entrevistadas, compreensivelmente, não ousavam lutar por eles, até porque nem tinham a certeza de que, preenchendo a totalidade dos requisitos, os conseguiriam obter. Dalila, por exemplo, após reunir toda a documentação exigida para atribuição de apoio alimentar, viu o seu pedido recusado por não possuir despesas habitacionais. «Você não paga renda, tem como sobreviver», reproduziu ela o discurso da assistente social. Dalila começou a prostituir-se aos 18 anos no Parque Eduardo VII, local onde conheceu o seu «marido», um ex-cliente, médico de profissão, de 43 anos de idade. Viveu com ele durante dez anos, até ao seu falecimento. Como herança, o «marido» deixou-lhe o apartamento onde viviam. Porém, quando «o médico morreu […] o dinheiro acabou», afirmou. Com 29 anos de idade, Dalila voltou a prostituir-se com maior regularidade para conseguir sustentar-se. Sendo seropositiva e mulher trans sem procedimentos de alteração corporal, não conseguia tanto sucesso quanto as outras colegas. Chegou ao ponto de não ter o que comer, razão pela qual decidiu recorrer a várias instituições sociais. «Não tinha dinheiro para um prato de sopa. Nem pão eu tinha em casa», confidenciou.

Tu sabes o que é teres montes de amigos e de repente, te vês sem nenhum? E naquele momento em que tu precisas de ter um apoio. Um amigo que te dizia «és como se fosses meu irmão de sangue» e de repente [...] tu precisas de alguém que te passe a mão na cabeça [...] ou [que te dê] uma palavra amiga e virarem-te todos as costas? [...] queres dinheiro para comer e não teres, e começares-te a mexer e veres as portas todas a se fecharem na tua cara. E a dizerem-te «você tem casa própria, por isso, tem rendimentos, não precisa de apoio». E veres constantemente as portas a fecharem-se na cara e começares-te a isolar em casa e entrares na depressão, a degradares-te mesmo. [Dalila]

Da rede social informal de Dalila fazia parte apenas uma única amiga. Era ela quem a «safava» nos momentos de maior fragilidade económica, emprestando-lhe dinheiro para subsistir. Era ela quem lhe pagava o táxi e a alimentação do dia seguinte, quando não se conseguia «estrear», ou seja, fazer pelo menos um cliente. Foi ela quem lhe pagou, também, a viagem para «fazer praça» em Paris, uma vez que em Lisboa não conseguia recrutar muitos clientes e os serviços sociais não se dispunham a ajudá-la. Este foi o último apoio que lhe concedeu. Poucos meses depois de ter chegado a Paris, Dalila faleceu, sozinha, enferma, numa cama do hospital. O corpo nunca foi reclamado pela família, pelo que ninguém a chorou num funeral. A precariedade do sistema de proteção social criou condições para que a forte desfiliação social de Dalila viesse, pois, a culminar na sua morte.

Para Zara, os profissionais que trabalhavam em registos “científico-burocráticos” (Amaro, 2012, p. 127) negligenciavam, na sua avaliação diagnóstica, alguns aspetos importantes das reais necessidades das pessoas trans trabalhadoras do sexo. Por isso, em situação de confronto, não se inibia de lhes referir que a verdadeira verificação da condição de recursos deveria ocorrer junto dos contextos reais de vida. «A vossa obrigação É IR AO TERRENO. Vocês estão aqui sentadas. Mas se vocês querem saber a situação, vão lá», arguia-lhes. “Ir ao terreno” expressava a obrigatoriedade de os/as assistentes sociais assumirem, cada vez mais, posicionamentos “científico-humanistas” (Amaro, 2012, p. 128) a fim de conseguirem colocar no centro das suas preocupações o bem-estar das populações junto das quais intervinham.

A gestão do cuidado, a compreensão, o desenvolvimento de relações de confiança e a sua implicação na mudança eram aspetos centrais que elas consideravam dever nortear a intervenção dos/as assistentes sociais, e não o seu papel tecnocrático, regulador ou fiscalizador. Para terem conhecimento da sua identidade, comportamentos, competências, assim como das múltiplas carências, discriminações e violências de que eram alvo, e lhes providenciarem suporte adequado e em tempo útil, era necessário serem capazes de «entrar em relação». Mas isso exigia tempo e disponibilidade, que eles/as não tinham, não queriam ou não podiam despender. A adoção de abordagens mecânicas e distanciadas tornavam-se, assim, instrumentos de perpetuação das desigualdades.

Uma outra dificuldade que as entrevistadas relataram foram os longos períodos de espera para a obtenção dos apoios sociais. Se esses apoios visassem suprir necessidades iminentes, como as alimentares, a situação tornava-se especialmente reprovável. «Estás cinco ou seis meses, à espera, sem dinheiro. E do que é que vais viver? Do ar? O ar não alimenta!», comentou Dalila, revoltada com a situação. Dado reconhecerem que lhes era muito difícil colmatar as carências durante o tempo em que tinham de aguardar por uma resposta, viam-se forçadas a «bater o pé», como exprimiu Zara, e reclamar insistentemente, valendo-se por vezes do escândalo e, se necessário, de posturas mais combativas para que lhes fossem atribuídos os apoios. «Eu, em certas situações, precisei de ser agressiva para me ajudarem», afirmou Zara. Porém, algumas delas viram-se confrontadas com respostas dos/as técnicos/as que lhes desagradaram bastante, nomeadamente para se «manterem calmas» e aguardarem, disciplinadas, por «contactos posteriores». Para Fabiana, a proatividade, o compromisso e a demonstração de interesse na co resolução dos seus problemas eram características fundamentais da abordagem profissional, pelo que distinguia os «bons/boas» técnicos/as dos/as «maus/más» técnicos/as.

[...] para mim os assistentes sociais eram só de falar... porque só falam, falam, mil e uma coisas... só me falavam «vamos ajudar...» e sempre acabava mal. Deixavam de me contactar e eu ia atrás e «ai, tem de ter calma...». Eu não precisava que me dissessem para eu ter calma, porque calma tenho eu... Preciso de alguém que me mostre que realmente está ali e que vai-me ajudar. [Fabiana]

As entrevistadas, sabendo que podiam contar com algumas das suas redes informais, acabavam por desistir destes apoios. «Se eu estivesse à espera tinha morrido. A verdade é essa», disse Sabrina. «Prefiro bater à porta do meu vizinho, pedir um pão para comer, do que andar de roda deles.» As entrevistadas avaliavam a intervenção dos serviços sociais como sendo extremamente ineficiente.

Ainda que eles fossem necessários, as respostas demoradas não se coadunavam com a emergência de algumas situações. Por essa razão, Sabrina acreditava ser uma «perda de tempo» recorrer a eles: «Não vale a pena. […] Recorri à Santa Casa […] fui… sei lá, percorri Seca e Meca e ficou em águas de bacalhau […] chega a um ponto que, para mim, já é uma palhaçada […] até hoje nem uma resposta me deram.». Uma vez que as suas necessidades não eram atendidas em tempo útil, o processo de intervenção social tornava-se muito saturante, pelo que considerava não valer a pena «andar a cansar-se». «Chega a um ponto que as pessoas fartam-se», comentou ela, indicando o motivo do seu afastamento dos serviços sociais.

4. CONCLUSÕES

Constatou-se que as mulheres trans trabalhadoras do sexo olhavam e se relacionavam com os serviços sociais com distância e ceticismo atendendo ao conjunto de barreiras, limitações e “violências institucionais” (Lagraula-Fabre, 2005) com que se confrontavam. Ainda que os serviços sociais fossem bem-intencionados, o “suporte problemático” decorrente da falta de apoio, da dificuldade do acesso, da concessão de recursos inadequados ou em tempo desfasado, afetava os esforços levados a cabo pelas trabalhadoras do sexo para melhorar a sua condição social, com consequências imprudentemente negativas para a sua vida e bem-estar individual, encorajando ou reforçando comportamentos prejudiciais, constituindo um quadro de vitimação secundária.

Reconhece-se que a dimensão e a especificidade geográfica da amostra limitam a generalização dos dados. Ainda assim, considera-se que estes são muito relevantes, por evidenciarem que o modo de atuação dos serviços sociais contribuía para a marginalização e exclusão social das mulheres trans trabalhadoras do sexo. Com efeito, crê-se ser necessário e urgente que os serviços sociais desenvolvam esforços para eliminar todas as barreiras que afastam as pessoas trans, de género diverso e não binárias das instituições, de modo a facilitarem o suporte social. Se, por um lado, deverá haver uma adequação interna dos próprios serviços com o objetivo de se transformarem em espaços verdadeiramente seguros e inclusivos onde as pessoas trans se sintam bem-vindas, acolhidas e com as suas necessidades atendidas, por outro lado, a formação dos/as seus/suas profissionais sobre género e sexualidade torna-se uma prioridade, por forma a se munirem de competências para comunicarem e intervirem eficazmente e prestarem serviços qualificados e não discriminatórios. Recomenda-se o desenvolvimento de estudos de natureza quantitativa, com maior abrangência geográfica e/ou que envolvem os próprios assistentes sociais com vista a uma maior compreensão sobre o suporte social prestado pelos serviços sociais a pessoas trans, de género diverso e não binárias.

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